Diabetes mellitus é um desafio significativo e crescente para a saúde pública, especialmente em países de baixa e média renda (PBMR). Seu impacto está aumentando rapidamente na maioria dos países (1). As projeções indicam um aumento global de 537 milhões de pessoas vivendo com diabetes em 2021 para 783 milhões em 2045, com 94% desse crescimento ocorrendo em PBMR (2). No Brasil, a prevalência do diabetes aumentou 24% entre 2013 e 2019 (3) e espera-se que passe da sexta para a terceira principal causa de morte até 2040 (4). O aprimoramento das tecnologias de informação e comunicação é uma estratégia fundamental para enfrentar os desafios impostos pelo diabetes (1). Para isso, dados do mundo real (4,5) obtidos a partir de sistemas de informação em saúde têm sido utilizados para esclarecer problemas de saúde e determinantes da saúde da população (6,7). Ao integrar e combinar múltiplas fontes de dados de saúde, os registros populacionais desempenham um papel essencial no uso secundário desses dados (8). Eles fornecem novas informações sobre um problema específico em uma determinada população, aproveitando informações já existentes, em conformidade com a Estratégia Global de Saúde Digital da Organização Mundial da Saúde, que incentiva o uso de dados secundários de saúde para melhorar a qualidade da assistência médica e a eficácia da pesquisa (9,10). Registros populacionais relacionados ao diabetes foram desenvolvidos em países de alta renda, mas são incomuns em PBMR (11,12). Até onde sabemos, na América Latina não existem registros populacionais sobre diabetes com base em dados coletados rotineiramente dos sistemas de saúde. No Brasil, sistemas de informação relacionados à atenção primária agora estão disponíveis para complementar aqueles já utilizados para hospitalizações e óbitos (13,14). A vasta extensão geográfica do Brasil e suas especificidades regionais levaram a iniciativas municipais para resolver necessidades locais para registros assistenciais e de vigilância a saúde (15,16). Desde o ano 2000, as autoridades de saúde pública de Porto Alegre, no sul do Brasil, implementaram diversos sistemas de informação complementares aos nacionais para apoiar ações clínicas, regulatórias e de vigilância em saúde. Neste contexto apresentamos o Registro de Pessoas com Diabetes residentes no Município de Porto Alegre. Ao longo deste documento técnico serão detalhados os procedimentos realizados para sua implementação, os principais resultados, limitações e perspectivas concretas de seu uso para qualificação das ações das ações de vigilância em saúde.
O presente projeto teve como principal objetivo criar um registro das pessoas com diabetes mellitus residentes no município de Porto Alegre, RS, Brasil a partir de dados assistenciais, regulatórios e de vigilância. Também de validar a implementação de etapas de leitura, tratamento, integração e agregação desses dados. Considerando as potencialidades de Registros Populacionais, o presente projeto tem buscado fazer uso dos dados obtidos para a compilação e geração de informações que apoiem as políticas locais de vigilância em saúde, com a construção de parâmetros epidemiológicos (p.ex., prevalência, incidência e mortalidade) que podem ser estratificadas por idade, sexo, demografia e outras características.
Foram obtidos dados em oito bases provenientes de sete sistemas de informação clínica e administrativa, listados a seguir: • Sistema de Dispensação de Medicamentos (DIS); • Prontuário Eletrônico da Atenção Primária (e-SUS APS); • Gerenciamento de Consultas e Exames (GERCON); • Gerenciamento de Exames (GERCON); • Gerenciamento de Internações (GERINT); • Faturamento Hospitalar (Sistema de Informações Hospitalares—SIH); • Sistema de Informações Hospitalares (SIHO); • Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Vale destacar que os sistemas de informação e suas respectivas bases de dados se complementam ao abranger diversos contextos e diferentes pontos de contato entre os indivíduos e os serviços de saúde. Esses pontos vão desde consultas de rotina na atenção primária até outros procedimentos de saúde, passando pela dispensação de medicamentos, consultas especializadas e exames diagnósticos. Além disso, incluem hospitalizações, intervenções emergenciais menos frequentes e, por fim, desfechos terminais, como a mortalidade, especialmente nos casos em que as bases de dados anteriores não identificaram eventos relacionados ao diabetes ao longo do período coberto pelo registro da vida do indivíduo. Foram escolhidas variáveis das oito bases de dados mencionadas acima para facilitar (a) a vinculação entre conjuntos de dados de saúde, permitindo a integração de exposições e desfechos, (b) a elaboração de um perfil demográfico dos participantes e (c) a identificação do diabetes e suas complicações. Qualquer um dos seguintes critérios identificava um possível caso de diabetes: • um código para diabetes conforme a Classificação Internacional de Doenças — versão 10 (CID-10) ou a Classificação Internacional de Atenção Primária — versão 2 (CIAP-2); • um medicamento prescrito e dispensado para controle do diabetes; • um código de procedimento indicando tratamento para complicações agudas ou crônicas do diabetes, de acordo com a tabela brasileira de procedimentos e materiais de saúde (Tabela de Procedimentos, Medicamentos e Órteses-Próteses-Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde). • Para registros de óbito, identificou-se o diabetes tanto como causa básica quanto como causa contribuinte. Pessoas com diabetes foram identificadas separadamente em cada base de dados. Quando uma pessoa apresentava duas ou mais ocorrências na mesma base, para efeito do primeiro ciclo de obtenção de dados, selecionamos a ocorrência mais antiga. Dessa forma, obtiveram-se oito bases de dados intermediárias, cada uma contendo um registro único para identificar as pessoas que atenderam aos critérios de diabetes. Em seguida, foram unidas essas oito bases intermediárias para criar o registro municipal de pessoas com diabetes. Para comparar as bases e remover duplicatas utilizamos o número de identificação único como chave de correspondência determinística, exceto para a base de faturamento de internações hospitalares (SIH) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Para essas bases foi realizado correspondência probabilística com base no algoritmo de distância Jairo–Winkler (17). Quando a mesma pessoa estava presente em mais de uma base intermediária, registrou-se a presença de diabetes com base na ocorrência mais antiga.
A primeira versão do registro municipal de pessoas com diabetes em Porto Alegre contém os seguintes dados para cada indivíduo: número de identificação único, data de nascimento, sexo, código ou descrição do diagnóstico (CID, CIAP-2, medicamento ou código de procedimento) e a data em que o diabetes foi registrado pela primeira vez durante o período do estudo nas bases de dados do sistema de saúde. O processamento inicial dos dados identificou 1.007.850 ocorrências de diabetes em oito bases de dados. O processo de de-duplicação resultou em 73.185 indivíduos únicos com diabetes. Desses, 33.050 foram identificados em uma única base, 24.755 em duas bases e 15.380 em três ou mais bases. Quanto às fontes de identificação, 37.865 indivíduos foram identificados com base na dispensação de medicamentos para tratamento do diabetes; 26.237 por meio de consultas na atenção primária; 3.437 a partir do registro de mortalidade; 2.478 por meio de consultas especializadas; 1.460 via exames laboratoriais específicos; 1.297 a partir de internações hospitalares ou faturamento hospitalar; e 411 por consultas em unidades de pronto atendimento (Figura 1 – Anexo Imagem). Considerando a população estimada de Porto Alegre em 2020 em 1,33 milhão de habitantes, esses casos representam 5,5% da população ao longo do período avaliado de três anos. O registro foi projetado para permitir o processamento e a extração futura de informações adicionais sobre ações preventivas (por exemplo, avaliação oftalmológica, exame do pé diabético, monitoramento de creatinina e micro albumina), hábitos (tabagismo) , medidas de controle (HbA1c, nível de glicose, pressão arterial, perfil lipídico), perfil de tratamento (uso de medicamentos orais, uso de insulina, acompanhamento nutricional), complicações (hipoglicemia, retinopatia diabética, nefropatia diabética, neuropatia diabética, doença arterial periférica, amputações, esteatose hepática/fibrose/cirrose, doenças cardíacas, acidente vascular cerebral) e mortalidade geral e específica.
Enquanto projeto que faz uso de dados secundários, cabe destacar que a qualidade da informação produzida depende diretamente da consistência e completude dos dados de origem. Mesmo utilizando dados estruturados, a variabilidade nos critérios de classificação entre milhares de profissionais de saúde é um fator limitante que gera imprecisões nas informações. Um segundo aspecto limitante é a restrição dos dados obtidos, que, com exceção da mortalidade, provêm informações exclusivamente dos atendimentos realizados no sistema público de saúde. Embora o sistema de saúde brasileiro ofereça cobertura universal, ele não fornece determinados medicamentos mais caros, exceto em casos específicos (por exemplo, SGLT2i), e alguns procedimentos (como cirurgias eletivas) frequentemente apresentam longas filas de espera, levando pacientes a pagar por medicamentos e procedimentos no setor privado. O uso desses medicamentos e a realização desses procedimentos não são capturados pelas nossas bases de dados. Essas restrições geram desafios para a extrapolação destes dados para toda a população de Porto Alegre. Logo, um dos aspectos limitantes para um dos objetivos do projeto é a capacidade de estimar prevalência e incidência da população total de Porto Alegre, uma vez que serão necessárias identificar estimativas das diferenças nessas métricas entre usuários do SUS e a população total. Erros nessas estimativas podem levar a sub- ou supra estimativas. Por fim, cabe ainda apontar que os recursos para sustentar horas de trabalho para os pesquisadores na Universidades estão garantidos para o corrente ano, sendo que há necessidade de recursos adicionais para apoiar as atividades na UFRGS a partir de 2026.
DIABETES
Pode-se afirmar que o projeto foi efetivo, na medida em que o principal resultado esperado, a obtenção de um registro de pessoas com diabetes em Porto Alegre, foi efetivado. Realizada em sua primeira versão, com resultados tangíveis na identificação de pessoas com diabetes em Porto Alegre. Outro ganho efetivo foi o desenvolvimento de uma metodologia de leitura, pareamento e tratamento de dados, que servirá como base para a replicada da tecnologia para outros agravos crônicos não transmissíveis de interesse epidemiológico, mediante ajustes de parâmetros utilizando as mesmas fontes de dados. Por fim, um resultado concreto adicional é a publicação desse projeto em uma revista científica internacional (18). Entendemos que, até o momento, o projeto se mostrou custo-efetivo e eficiente, uma vez que sua realização teve origem em uma pesquisa stricto sensu nível doutorado, sem consumo de recursos além da dedicação do pesquisador principal e dos demais pesquisadores. A partir de 2025 o avanço do projeto está delineado dentro de um termo de cooperação já pactuado entre a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, prevendo a participação de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia junto aos técnicos e servidores da Diretoria de Vigilância Sanitária de Porto Alegre. Esse grupo interinstitucional atuará conjuntamente para a sistematização dos processos de geração do registro, bem como apoio na análise de dados, contribuindo para o fortalecimento das ações de vigilância do diabetes.
A geração do projeto e a boa prática no uso de dados já permitiram a disseminação de conhecimento e de seus resultados por meio de eventos científicos, como sua participação e premiação no 17º Simpósio do International Diabetes Epidemiology Group (2022), realizado na cidade de Porto, Portugal em dez 2022. Além disso, outra estratégia de disseminação foi a produção e publicação de um artigo científico apresentando sua metodologia, resultados e avanços desta boa prática (18). Do ponto de vista da replicabilidade, por se tratar de uma metodologia computacional de tratamento de dados, o mesmo processo pode ser aplicado dentro da Secretaria Municipal de Porto Alegre para outros agravos de interesse epidemiológico. Além disso, considerando que grande parte das bases de dados utilizadas provém de sistemas de informação de uso nacional, há um significativo potencial de escalabilidade do projeto para outras localidades, sem a necessidade de grandes modificações em sua metodologia de tratamento de dados. Além disso, municípios, estados e eventualmente países podem construir registros semelhantes, permitindo seu acesso aos dados de vigilância do diabetes e de outras doenças de forma mais ágil e eficiente.
O projeto é baseado no reuso de dados para qualificação das ações de vigilância das condições crônicas e de interesse epidemiológico, a começar pelo diabetes. Os sistemas de informação dos quais as bases de dados derivam apresentam muito baixo risco de descontinuidade, uma vez que são sustentados tanto por instituições públicas de âmbito federal (ex. Sistema de Informações de Mortalidade, e PEC e-SUS) ou de âmbito municipal (Gerenciamento de Dispensações, Gerenciamento de Consultas, Gerenciamento de Internações) e apresentam histórico consolidado de uso por cinco anos ou mais. Logo, do ponto de vista de algum incidente que ocorra em relação aos dados de origem, o risco de descontinuidade é muito baixo. Do ponto de vista do seguimento do projeto, no que se refere a manutenção dos processos de pareamento, tratamento e armazenamento de dados, cabe ressaltar que a Prefeitura é atendida por Empresa Pública de Processamento de Dados (PROCEMPA). A PROCEMPA é empresa pública, da Prefeitura de Porto Alegre, e a qual a Secretaria de Saúde mantém contratos para o desenvolvimento e manutenção das soluções tecnológicas utilizadas e que precisam de gerenciamento tecnológico local. Considerando a maturidade da referida empresa e o papel no desenvolvimento e manutenção perene das tecnologias de informação direcionadas aos órgãos municipais, os riscos inerentes a descontinuidade do projeto são baixos no que se refere aos serviços digitais e de tecnologia. Em relação ao ambiente técnico, cabe destacar que a Diretoria de Vigilância em Saúde de Porto Alegre possui setores especializadas no tratamento e apresentação de cenário epidemiológico da cidade. Conta com equipes que atuam na área de eventos vitais, doenças transmissíveis e doenças e agravos não transmissíveis, sendo esta última área a mais recente quanto ao trabalho institucional na vigilância epidemiológica, sendo constituída no final do ano de 2019, dias antes da decretação mundial da pandemia de COVID-19. O Termo de Cooperação estabelecido entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, e a Secretaria de Saúde de Porto Alegre, por meio da Diretoria de Vigilância em Saúde, tem vigência prevista para os próximos cinco anos e objetiva propiciar um cenário de integração e compartilhamento de conhecimentos e boas práticas em ambas as instituições, o que também se coloca com um fator agregador de sustentabilidade do projeto.
Do ponto de vista técnico, o primeiro obstáculo, considerando uso de dados do mundo real, foi a em relação a padronização das informações, uma vez que os dados eram coletados de oito sistemas distintos, cada um com critérios próprios de classificação e registro. O acesso lógico aos dados, considerando as estruturas de segurança e governança nem sempre sistematicamente definidas, também se coloca com um dificultador ao solicitar acesso aos dados necessários. Do ponto de vista metodológico, cabe ressaltar novamente que a limitação do acesso aos dados do setor privado dificultou uma estimativa mais precisa da prevalência do diabetes na população total de Porto Alegre. Será necessário métodos estatísticos e de estimativa para gerar tais estimativas, o que pode gerar u viés potencial nos indicadores epidemiológicos gerados.
Inicialmente pode-se afirmar que é muito importante fortalecer a governança dos dados em saúde, implementando processos de documentação, geração, acesso e uso dos dados, bem como também promovendo padronização e interoperabilidade entre as diferentes bases de dados disponíveis. A experiência demonstrou que a vinculação de dados de múltiplas fontes pode ser uma estratégia eficaz para monitoramento epidemiológico, mas exige o estabelecimento de metodologias e em constante aperfeiçoamento para minimizar erros e inconsistências. Outra lição importante é que a replicabilidade depende de infraestrutura tecnológica e capacitação técnica. A cooperação entre instituições acadêmicas e órgãos governamentais, como estabelecido entre a UFRGS e a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, foi essencial para o sucesso do projeto. Para a OPAS, essa experiência destaca a necessidade de promover diretrizes regionais para a criação de registros populacionais de doenças crônicas e outros agravos de interesse em saúde pública. O apoio técnico da OPAS pode ser valioso na definição de parâmetros padronizados e na disseminação de metodologias de integração de dados, garantindo maior confiabilidade e comparabilidade entre diferentes localidades.
Diabetes Mellitus; Health Surveillance System; Health Information Systems
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Objetivo 3 - Meta 3.4 |